A cena que se desenha discretamente no mapa corporativo sul-americano é contundente: um fluxo crescente de empresas brasileiras atravessando a fronteira rumo ao Paraguai. O movimento, que começou há mais de uma década com algumas indústrias de confecção e autopeças, hoje envolve dezenas de novas plantas e centros logísticos, somando facilmente mais de 200 operações com capital brasileiro em solo paraguaio, quando se consideram indústrias maquila, centros de distribuição, holdings e estruturas de serviços compartilhados.
Os motivos vão muito além da narrativa simplista da "mão de obra barata". O que está em jogo é um contraste brutal entre dois modelos tributários: de um lado, o sistema brasileiro, historicamente complexo e em transição, agora acrescido de tributação sobre dividendos e lucros no exterior; de outro, o Paraguai, que consolida um ambiente de impostos baixos, previsíveis e territorialmente limitados.
Brasil: reforma com cara de aumento de carga para o capital produtivo
Com a promulgação da Lei 15.270/2025, o Brasil reinstaurou a tributação de dividendos - algo que não existia há quase três décadas. A nova regra prevê retenção de 10% sobre lucros e dividendos distribuídos a pessoas físicas residentes quando o valor excede R$ 50 mil por mês por empresa, além de um imposto mínimo sobre altas rendas anuais acima de R$ 600 mil.
Paralelamente, o governo avançou em propostas para tributar lucros remetidos ao exterior e lucros de controladas estrangeiras, com alíquota de 10% sobre dividendos enviados fora do país, como forma de compensar a ampliação da faixa de isenção do IRPF para a classe média.
Na prática, ainda que o discurso oficial fale em "neutralidade fiscal", o efeito combinado para o empresariado é claro: tributação elevada na pessoa jurídica (IRPJ CSLL na casa de 34%),
seguida de uma segunda camada de imposto na distribuição de lucros acima de determinados patamares, somada a uma reforma do consumo que tende a elevar a complexidade operacional (novo CBS/IBS) para muitos setores.
Para empresas exportadoras, industriais intensivas em energia ou negócios de margem apertada, esse desenho reduz a competitividade internacional justamente no momento em que o país tenta recuperar protagonismo industrial.
Paraguai: 10% de imposto e 1% de Maquila
Enquanto o Brasil sobe a barra regulatória, o Paraguai consolida um discurso simples: 10% de imposto de renda corporativo (IRE) para empresas em geral, 10% de IVA padrão, ausência de imposto sobre patrimônio e baixa carga sobre pessoa física, também com estrutura em torno de 8-10%.
No caso de empresas que operam sob o regime Maquila, voltado à exportação, o atrativo é ainda maior: alíquota única de 1% sobre o valor adicionado em território paraguaio ou sobre o valor da fatura de exportação, o que for maior; suspensão de impostos de importação sobre máquinas e insumos; isenção ampla de tributos internos e facilidades para remessa de lucros ao exterior.
Estudos e reportagens mostram que, apenas no âmbito do programa Maquila, já foram abertas mais de uma centena de fábricas, muitas delas de capital brasileiro, com dezenas adicionais em implantação. Some-se a isso a nova onda de migração de empresas de serviços, logística e estruturas societárias motivada pelo sistema de tributação territorial: no Paraguai, em regra, apenas a renda de fonte paraguaia é tributada, enquanto rendimentos de fonte estrangeira podem permanecer isentos.
Na prática, o país oferece uma combinação poderosa: impostos baixos e simples, energia extremamente barata (quase toda gerada por hidrelétricas), custo de trabalho menor e legislação trabalhista menos onerosa, e regimes incentivados de longa duração (até 20 anos de benefícios no Maquila, com possibilidade de renovação).
Três histórias típicas de quem cruza a fronteira
Os cenários hipotéticos ajudam a traduzir o incentivo econômico: Uma empresa brasileira de serviços com R$ 1 milhão de lucro pode ver sua carga total (empresa sócio) se aproximar de 40% do lucro após a nova tributação de dividendos, contra algo em torno de 15% em uma estrutura equivalente no Paraguai.
Uma indústria exportadora, altamente intensiva em energia e mão de obra, sujeita a IRPJ, CSLL e tributos sobre consumo no Brasil, pode pagar cerca de 34% apenas sobre o lucro, enquanto no regime Maquila do Paraguai suporta 1% sobre o valor adicionado - uma diferença de milhões de dólares anuais para plantas de médio porte.
Uma plataforma de serviços digitais ou SaaS, que fatura principalmente fora do país, enfrenta, no Brasil, a tendência à tributação da renda mundial e dos lucros remetidos para fora. Já no Paraguai, pode ser tributada apenas sobre a fatia de receita local, com alíquota de 10%, mantendo isenta a maior parte dos fluxos internacionais.
Não surpreende, portanto, que escritórios especializados em internacionalização relatem aumento expressivo da demanda por estruturação via Paraguai, tanto para indústria quanto para serviços.
O risco estratégico para o Brasil
O movimento de empresas brasileiras para o Paraguai ainda não é um "êxodo" em massa, mas o sinal é claro. Cada fábrica, centro de distribuição ou operação digital que cruza a fronteira leva consigo: empregos diretos e indiretos, cadeias de fornecedores, arrecadação futura, capacidade produtiva e tecnológica.
No curto prazo, o Brasil pode até compensar parte da perda com a nova tributação sobre dividendos e lucros no exterior. Porém, no médio e longo prazos, há um risco evidente de erosão da base produtiva: se produzir no Brasil passa a ser estruturalmente menos competitivo do que produzir a poucos quilômetros dali, a racionalidade econômica empurra o capital para fora.
Mais grave ainda, essa migração acontece em um contexto em que o país tenta financiar expansão de gastos públicos e políticas sociais com aumento de carga sobre uma base cada vez menor de contribuintes formais - um círculo potencialmente vicioso.
Simplificar ou assistir à saída silenciosa
O Paraguai não se tornou mais atrativo por acaso. O país desenhou, ao longo de anos, um sistema tributário baseado em simplicidade, previsibilidade e baixas alíquotas, com incentivos específicos para exportação, energia barata e foco em atrair investimento produtivo.
O Brasil, por sua vez, avança em reformas importantes, mas com sinal misto: de um lado, melhora a progressividade do IRPF; de outro, aumenta a pressão sobre lucros, dividendos e operações internacionais sem reduzir, de forma consistente, a complexidade e o custo de se cumprir obrigações acessórias.
Se nada for feito rapidamente na direção de simplificar o sistema, reduzir a litigiosidade e tornar a carga mais competitiva para o capital produtivo, o país corre o risco de assistir a uma saída silenciosa de empresas - começando pelas mais flexíveis, intensivas em tecnologia e voltadas à exportação.
Mais do que discutir se "200 empresas já se mudaram", a questão central é outra: quantas ainda precisarão sair para que o Brasil perceba que competitividade fiscal não é luxo, é condição de sobrevivência em uma economia cada vez mais integrada e móvel?

